Abri a porta, os braços, o peito, a minha vida, abri meu coração pra ela. Abri a boca pra falar alguma coisa. Mas fui impedido por um dedo em riste e um olhar sensual.
"Eu tenho uma tara estranha, sabia? Eu gosto de algemar pessoas." disse ela como quem dá bom dia à própria avó numa daquelas manhãs de domingo quando a gente acorda e tem café pronto e pão quentinho com manteiga. Eu ri. Primeiro ri por rir e depois comecei a rir de desespero. Ela avançou pra cima de mim, me algemou e me jogou na poltrona que tem ali na sala. E ali eu fiquei, quieto, imóvel enquanto a via pegar uma cadeira, colocar à pouco menos de meio metro de mim, e sentar. Abriu a bolsa e sacou dali uma pequena faca. Tirou a própria camiseta, depois o sutiã e me encarou a encarar aqueles seios.
Correu então o dedo pela faca e o lado sem fio da faca pelo meu rosto sem tirar o olhos dos meus e eu ali completamente petrificado, paralisado, aterrorizado. Disse calmamente como quem explica para uma criança que aquele leão à sua frente é tão inofensivo quanto um pônei: "Calma, eu não vou te machucar. Não muito. Não com isso." e enfiou a faca embaixo do próprio peito, abriu ali um buraco suficientemente grande para passar as pontas do dedo e tirou de dentro o coração. Não saiu sangue algum durante o processo, o coração batia, mesmo fora do peito, mesmo desconectado das veias e artérias. Pulsava. Me pediu pra ficar quieto e só olhar. Tirou de dentro da bolsa uma pequena caixa de madeira e de dentro da caixa alguns alfinetes, me mostrou alguns deles dizendo "Lembra? Esses eram seus, ficavam espalhados por aqui." e apontou para uma região daquele coração.
Me limitei a balançar a cabeça positivamente, com os olhos cheios de lágrimas.
Ela então separou alguns outros alfinetes, de cor diferente dos "meus alfinetes", e começou a espetar. À cada estocada meu peito doía em uníssono com seu, à cada espetada meu olho se enchia junto com o seu e quando achei que não podia mais aguentar ela pegou a faca e começou a fazer pequenos cortes naquela massa vermelha que pulsava entre seus dedos, a cada corte ela vertia uma lágrima e se segurava pra não chorar, pra não gritar. Eu me espantei com aquela frieza e a mandei parar com aquilo, disse que aquela não era a solução, que de nada iria resolver fazer esse tipo de loucura. Ela, entre um soluço e outro, me disse que havia algo prazeroso ali. Mas será que há algum prazer naquele automasoquismo emocional? Talvez fosse aquela a maneira dela de se livrar das pressões. Talvez aquela fosse a minha maneira de me livrar de algumas pressões. Vê-la sofrer. Por outro. Sem poder interferir. É... existe algo de prazeroso nesse automasoquismo emocional.
Passamos um tempo em silêncio contemplando os olhos úmidos um do outro e eu disse "Me desalgema, eu preciso pegar água." mas quando voltei pra sala ela já tinha ido embora. Eu sei que dentro de um mês ou menos ela volta. Ela sempre volta. Só não entendi ainda o porquê, mas pra ser sincero tanto faz. O que sobra não é o sofrimento ou o prazer que ele gera, o que sobra é a covardia. A minha covardia, a minha incapacidade de me desligar do plug que me conecta à Matrix, a minha falta de coragem de simplesmente não abrir a porta quando ela bate. O que sobra sou eu, perdido em meio ao caos que eu sou. E é nessas horas que eu saio na chuva e rio do mundo.
Seção: (Medicina) efeito de cortar (um órgão ou qualquer outra estrutura) numa cirurgia.