A casa que ficava na Maria Antonieta, 171, era legal. Nós fundamos a república lá, vivemos por um bom tempo, criamos laços incríveis de amizade, tomamos processo de um vizinho por causa de barulho e festas, criamos algumas gatas e alguns fungos na pia também. Era uma casa boa, ela me dá saudade assim como a casa de Matacavalos dava saudades à Bentinho. Agora a casa é outra, em outro lugar, outra pegada, outra arquitetura, três andares, uma suíte enorme, três quartos menores, cozinha e sala que por si já são maiores que a casa da Maria Antonieta. Nessa sala tem um sofá, um antigo sofá que está conosco desde a casa antiga e parece que vai continuar pelo resto de nossas vidas. Ele é antigo e velho, mas super confortável.
Estava aqui, sentado com meu notebook no colo assistindo algum filme, quando percebo um vulto na curva da escada que leva para o segundo andar. Fiquei um pouco assustado e tirei os fones pra ouvir melhor e saber se havia alguém ali. Fixei meus olhos na curva da escada e vi na parede uns dedinhos finos e amarelos surgirem agarrados à parede, depois surgiu a ponta de uma cabeça esquelética, calva e tão amarela quanto dos dedos e por fim olhos verdes doentios apareceram e me encararam com uma expressão de morte. Eu queria correr e fugir e me esconder, mas não conseguia. A criatura sinistra e medonha se mostrou por inteira, apontou o dedo pra mim e disse "Fica exxxperto, rapaxxx. Te pego na curva..." peguei minha mochila e saquei meu grimório mágico de criaturas malignas que podem surgir do nada e descobri que aquele ser era uma clássica Febre Descarnada e que ela ataca o ser humano quando esfria e seu sistema imunológico está baixo. Fiquei com medo e para que vocês entendam meu medo, serei obrigado à teletransporta-los no tempo...
Há mais ou menos uns quatro meses eu juntei uma grana e fui em uma costureira de confiança pedir para que ela me fizesse umas camisas. Sim, sou desses que mandam fazer as próprias camisas, pois ficam exatamente do meu tamanho, no modelo que eu quero e são extremamente exclusivas, afinal de contas fui eu quem escolhi o tecido, a costureira, tudo. Pode parecer frescura e é. Mas no fim das contas eu obtenho um produto de ótima qualidade por um preço razoável. Acontece que existem duas costureiras perto da casa dos meus pais ali no interior do Mato Grosso do Sul. Uma delas é a Denise, já tem experiência com as minhas medidas porque das vinte camisas que eu tenho quatorze foram ela quem fez, e tem a dona Maria... Eu mal sabia da existência da dona Maria, acabei descobrindo por um acaso em um dia que conversava com minha mãe sobre o vestido de noiva da minha prima que iria se casar em breve, eu queria saber quem faria o vestido como ele seria, etc. etc. e ela me contou que seria a dona Maria, uma velhinha gente boa que mora há dois quarteirões de casa. Fui lá trocar ideia com ela, saber quanto ela cobrava pra fazer umas camisas do jeito que eu queria com um modelo x, quando ela poderia entregar, todas essas questões que se fazem necessárias quando se vai mandar alguém te fazer uma roupa ou qualquer outra coisa. Fechei negócio com ela, entreguei os panos num dia e fiquei de ir buscar na outra semana. Duas peças de tecido, uma amarela de bolinhas brancas (que depois eu fiquei sabendo que recebe o fofíssimo nome de poá) e um xadrez vichy vermelho que parece tecido de toalha de mesa daquelas cantinas italianas, mas é lindo de morrer. Entreguei também uma camisa xadrez amarela que eu comprei quando ainda morava em Taiwan e que serviria de modelo.
Ok, primeira vez que eu confiaria minhas camisas a outra pessoa que não fosse a Denise. Confesso que me deu um certo frio na barriga. Quem compra tecido pra fazer as próprias roupas sabe do que eu estou falando... Sempre bate aquela aflição de saber que se a pessoa fizer um trabalho mal feito no corte depois não tem mais volta e tudo o que te sobra são pedaços de pano mal cortados. Mas ok... Voltei na semana seguinte para experimentar e buscar as peças já prontas. Experimentei e blééé, tinha um erro. A camisa que deixei de molde era de manga três quartos, mas eu a usava dobrada pra cima sem abotoar por tê-la comprado em um tempo no qual meus braços eram mais finos e esqueci de dizer pra dona Maria que ela teria de fazer as mangas um pouco mais largas. Ou seja, há quatro meses eu tinha duas camisas que as mangas não fechavam no meu braço. E esses dois parágrafos acima foram só para vocês entenderem o quão grave é a minha atual situação. Essas duas camisas que não fechavam nos meus braços agora fecham e eu ainda consigo dobrá-las pra cima e ficam com um ou dois dedos de folga.
É... Enrolei dois parágrafos pra poder dizer que estou há praticamente duas semanas me alimentando estupidamente mal, o que é algo completamente incoerente com o texto que fiz semanas atrás pra falar sobre a minha incrível nova alimentação vegetariana. Acontece que eu fui enfiado de vez, sem me questionarem se eu queria ou não, na chamada rotina. Esse monstro maligno, essa roda dentada espinhenta que massacra a alma humana dia após dia com seus padrões e seu tesão de nos submeter à viver de maneira igual um dia após o outro. Na verdade o problema nem é a rotina em si e sim a "falta de tempo" entre aspas grandes. Tempo eu tenho, só não tenho tempo hábil. Não consigo acordar muito cedo e meu estágio só começa meio dia, logo eu acordo lá pelas dez da manhã e só tenho tempo de tomar um banho, comer um copo de granola com iogurte e #partiu. E ai os senhores devem estar pensando "Ok, Lucas. Mas qualquer um sobrevive sem café da manhã tranquilamente." e eu concordo com você... Acontece que não é só o tempo que me falta, existe também um déficit financeiro ai que não me deixava gastar dinheiro com almoço. Existe algo em mim que eu venho desenvolvendo há alguns meses e se chama orgulho exacerbado. Esse orgulho específico me impede de ligar pro meu pai pra pedir ajuda. Já tratei disso em outros textos, mas basicamente eu me sinto "humilhado" demais em ter de pedir ajuda aos meus pais estando com vinte e um anos de idade e uma barba que deixa muito mendigo da Sé no chinelo. Eu acho feio e me dá um mal estar emocional/psicológico tão grande que é preferível passar fome. E é justamente por isso que eu só resolvi escrever esse texto agora, depois de ter recebido - finalmente - o dinheiro que a Futura Networks me devia pelo trabalho que fiz no fim de janeiro. Ou seja, quando meu pai ler esse texto ele não vai mais precisar me enviar grana, já que agora eu tenho dinheiro e posso voltar a me alimentar bem. Pois é... A vida anda complicada porque ainda não comecei a receber o vale transporte nem o vale alimentação e estou praticamente pagando pra trabalhar... Mas acho que a pior parte disso é meu sorriso desenfreado e psicótico estampado na minha cara. Não existe má alimentação pra quem se alimenta de luz e amor!
Enfim, é isso. Eu ando me alimentando mal pra caramba, mas amanhã isso acaba e eu voltarei e comer como o ser humano bom de garfo que sou e em breve minhas camisas não fecharão mais no braço de novo.