sexta-feira, 28 de março de 2014

À luz de velas.

Cheguei em casa atravessado de fome. Eu não, o dinossauro que vive em mim. Quando eu era criança, fui amaldiçoado por uma velhinha que era uma bruxa e ninguém sabia. Além da maldição da barba, ela fez com que eu tivesse a maior de todas as fomes do universo, até mesmo Galactus se espantaria se me visse. Minha mãe, com medo de que eu devorasse o resto da casa (um sofá já tinha ido), me levou em uma benzedeira pra ver se ela dava conta de tirar a maldição de mim. Eu lembro que entre a minha casa e a benzedeira eu comi o estofado do banco traseiro do Uninho prata que a gente tinha e um sapato. Mas tudo bem, chegamos na benzedeira e ela disse que a única maneira de parar aquilo seria me fazer devorar meu medo. Mas eu era uma criança extremamente medrosa, logo eu tinha medo de tudo e eu já estava comendo tudo, não resolveria comer tudo tudo de novo. Foi então que minha mãe se lembrou que entre os meus maiores medos estavam os dinossauros e os alienígenas, empatados ali com o Lobisomem e o Chupa-cabras. Ela saiu mercado à dentro procurando por um filé de brontossauro, ou de t-rex, mas não achou. Até porque, esses bichos já estão em extinção faz muito tempo. Nesse meio tempo eu comi duas cadeiras e quatro galinhas d’angola que tinham ali na casa da benzedeira, a fome não passava e eu continuava correndo e devorando tudo, fosse hoje em dia me confundiriam com algum cosplay do Taz.

Como minha mãe não achou nem filé de dinossauro, nem pedaços de alienígena, nem foi sagaz suficiente para entender que gasolina é feita de petróleo que é feito de dinossauros e portanto nada mais é do que dinossauros explosivos com cheiro de posto, restou à ela me trazer um dinossauro de borracha. Sem perceber o que era eu comi também... Nhac! E ai olhei pra minha mão e vi que havia ali um dinossauro sem cabeça! “Mãe! Tem um dinossauro na minha mão!” e joguei ele longe, quintal à dentro, o bicho aterrissou próximo à algumas galinhas d’angola com cara de susto que estavam tentando entender que diabo era aquele que corria pra lá e pra cá e comia tudo no quintal. A benzedeira foi até o corpo caído do dinossauro de borracha, recolheu ele do chão, passou no vestido pra tirar a terra, voltou calmamente, em encarou e disse “Come menino, come... É bão procê.” e eu comi... O problema é que a maldição da velhinha que era bruxa e ninguém sabia tinha uma espécie de efeito secundário, como a cerveja que além de deixar bêbado depois ainda te dá uma Ressaquinha de brinde, mas nesse caso o efeito foi dar vida ao bicho que havia no meu estômago e tirar de mim toda e qualquer possibilidade de sentir fome. Desde então eu não sinto mais fome, quem sente é o dinossauro que mora na minha barriga. Explicado isso, posso prosseguir com meu texto.

Cheguei em casa e o dinossauro que reside em meu estômago estava irritadíssimo de fome, quando ele fica assim costuma morder e arranhar meu estômago para que eu entenda o que está acontecendo. Isso explica muito bem as causas da minha pseudo-gastrite que nada mais é do que um dinossauro muito, muito, muito irritado tentando arrebentar meu estômago de dentro pra fora. Como eu fiz compras ontem, a geladeira está razoavelmente cheia, o que me dá uma bela liberdade de escolha com relação ao prato do dia e como hoje é sexta-feira e eu não tenho aula, posso perder horas, minutos e segundos na cozinha preparando a janta. E assim foi feito. Peguei umas verduras aqui, uns legumes ali, piquei uma cebola e refoguei com um pouco de shimeji na manteiga, cozinhei umas mandioquinhas e quando eu parei pra ver estava tudo pronto, mas havia algo diferente. O prato estava montado. Eu nunca monto pratos, nunca elaboro eles, simplesmente taco a comida em cima de qualquer jeito e como, às vezes fica feio pra caramba parecendo vômito de camelo. Eu não tenho o hábito de colocar uma coisinha aqui e outra ali, alinhar as coisas. Mas hoje eu fiz isso, sem perceber. Coloquei o tomate fatiado de um lado, a rúcula e o agrião do outro, fiz uma montanha de queijo pra colocar os cogumelos por cima ainda quentes (e deu muito certo, o queijo derreteu e ficou muito bom), coloquei a mandioquinha no meio e a abobrinha do lado. Ficou lindo, bem colorido, bem organizado, bem temperadinho. Dei um passo pra trás e reparei na minha obra de arte. Ai me deu vontade de sentar no chão da cozinha e chorar. E sim, eu estou falando sério. Porque faltou algo ali, faltou algo que me deixou um tanto confuso e desesperado, me deixou um pouco sem chão. Faltou outro prato.

Eu queria ter feito aquilo duas vezes e não uma só. Queria ter tido o dobro do trabalho, ter feito o dobro de comida, ter picado dois tomates e arrumado dois pratos. Porque é chato jantar sozinho. Naquela hora ali eu fiquei pensando em quantas pessoas ao redor do mundo não chegam em casa e simplesmente aquecem alguma gororoba de micro-ondas pra jantar assistindo tevê. Como se comer fosse um ato corriqueiro do dia-a-dia. Fiquei imaginando como pode o mundo estar tão doente assim? Eu queria ter pra quem cozinhar, de verdade. Eu quase tive vontade de sair na rua e procurar um mendigo e falar “Mano, vamo ali jantar comigo.”
E ai me lembrei de uma coisa que foi recapituladas ontem durante a aula de filosofia: Nenhum homem é uma ilha. E pensei cá comigo, enquanto comia meu shimeji e bebia meu suco de laranja que, realmente, a solidão é o maior dos males do nosso mundo.
Sei muito bem me sentir bem comigo mesmo. Mas será que isso é algo natural meu ou será que essa “autossuficiência” emocional não foi criada por mim pra combater os períodos nos quais eu sei que ficarei sozinho. E quantos outros no mundo também não são assim? Se bastam porque se obrigam a se bastar. É. O mundo te esmaga sem você perceber. E eu só queria alguém pra jantar comigo.