quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

"Título, pra que título?"

Mas uma daquelas segundas-feiras. Mais um dia entre tantos outros dias da minha existência que é uma entre tantas existências desse planeta que é um entre tantos planetas, nessa galáxia que é uma entre tantas galáxias, desse universo que é um entre tantos possíveis universos regido por esse deus que é um entre tantos possíveis deuses. E eu aqui. Andando. Parando. E andando de novo. Acordei nem tão tarde e nem tão cedo, sem expectativa nenhuma, sem alarme tocando, sem ninguém pra me dizer o que eu tinha que fazer. Abri meu caderno, liguei meu notebook, chequei as tarefas e nada. Simplesmente nada. Havia o material de uma das aulas pra baixar, mas eu já tinha baixado e lido ontem um pouco antes de dormir e tinha uma mensagem do mineiro que morava comigo nos meus tempos de república pedindo pra que eu fosse lá na minha antiga casa cuidar da gatinha dele, pois ele havia viajado e não sabia se o bichinho estava bem. Eu como um salvador nato de gatos e outros felinos, me predispus a ir no auxilio desse pequeno ser de bigodes, que faz miau e atende pelo nome de Hope. Almocei meu frango com os legumes que ainda tinham na geladeira e parti. Peguei um ônibus pra Santo André, desci na estação e me pus a caminhar em direção à Oito...

Eu andava pelo subsolo procurando uma saída, a saída lateral que dá no ponto onde a galera pega o ônibus da federal. É uma rampa comprida e fininha, com paredões do lado, ela sai do meio da terra em direção ao nada e eu me sentia o Bane naquela cena em que ele vem do subsolo e sai no meio do estádio de futebol pra pipocar a porra toda, a única diferença é que haviam umas luzes que piscavam no lugar onde eu estava, por causa do mal contato, o que contribuía pra deixar a cena muito mais legal. E lá estava eu, subindo a rampa de acesso, com o vento vindo contra, algumas gotas de chuva caindo daquele céu cinza da cidade que um dia eu aprendi a chamar de lar e que agora é só uma lembrança temporalmente distante e fisicamente presente. Subi, virei e comecei a andar, de repente eu percebi que havia perdido o jogo, eu tinha pisado em uma das fendas do piso, ri sozinho daquilo e pensei que caso eu tivesse oito anos eu teria ficado realmente chateado, mas me corrigi porque se eu tivesse oito anos aquilo nunca teria acontecido, o Lucas de oito anos nunca teria pisado na fenda do piso, nem na rachadura, nem na sacola plástica que insistia em voar pra baixo do meu pé. Ele desviaria e saltaria e pisaria na ponta do pé e bailaria sozinho um balé que era só dele, com a chuva caindo de leve e o vento batendo pesado e sua mãe gritando ao fundo "Lucas, vai devagar que você vai cair e ralar o joelho!" e é claro que ele não ia ligar, porque o Lucas de oito anos não ligava muito pra essas coisas de ralar o joelho. Mas eu não sou mais o Lucas de oito anos. O Lucas de oito anos teria abandonado a faculdade assim que ele percebesse que o valor da mensalidade era suficiente pra comprar muito, muito Lego ou vários carrinhos da hot wheels.
Quem sabe eu mesmo não faça isso? Abandone a faculdade e use o dinheiro da mensalidade pra comprar pôneis, ai eu pinto eles de colorido e coloco cones de cartolina em suas cabeças e digo que não são pôneis comuns, são pôneis mágicos, poneicórnios! E então eu abro uma fazenda para as pessoas visitarem meus poneicórnios e para as crianças cavalgarem em seres mágicos já extintos e perdidos no tempo. Tão perdidos no tempo quanto o Lucas de oito anos.

O vento bate de novo e traz consigo o cheiro do Tamanduateí e traz consigo todas as lembranças estranhas dos meus primeiros meses em Santo André, tendo que conviver com a poluição, o frio, o cheiro desse rio, a alegria louca de estar na universidade, de ter iniciado uma fase nova na minha vida, os cigarros de cereja no telhado do pensionato, aquela primeira cervejada onde eu conheci Ela, naquele campinho, naquele frio escroto. A lembrança de mim voltando pra casa a pé depois de mais um dia de aula, enroscando o rosto no cachecol, respirando na mão pra não puxar o ar frio pra dentro do nariz, aquele sorriso besta no rosto, o companheirismo dos moleques do pensionato. Aquele inferno que era o pensionato. Eu enfio a mão no bolso, troco a música e ponho Black Sabbath pra tocar - eu tenho ouvido muito Black Sabbath de umas semanas pra cá, principalmente o Paranoid - e afasto as lembranças enquanto os riffs entram na minha cabeça. Paro no semáforo. Passa uma carreta. Do lado de lá da rua está ele, o Tamanduatéi, correndo por baixo da ponte, correndo por entre as paredes de concreto que ergueram ao seu redor, recebendo os canos de esgoto que chegam de todos os cantos da cidade, correndo indomável levando no peito todo o lixo que jogam nele, correndo em uma espécie de protesto, correndo como quem diz "Joguem mais lixo, eu aguento, eu empurro, eu levo no peito daqui até der."
Passa outra carreta, passa um uno, passa um fusca, o sinal fecha, eu atravesso. No meio da rua uma criança esbarra em mim e eu olho pra ela e sorrio e ela me sorri de volta e eu sinto que naquele momento nós somos as únicas duas pessoas, num raio de quilômetros, que estão sorrindo. E eu rio pensando se ela ficaria feliz caso eu lhe entregasse um ingresso para a fazenda dos poneicórnios encantados mágicos. Termino de atravessar a rua. Nada muda nessa vida, nada muda nesse bairro. O Carrefour ainda está ali, parado, fazendo frente ao tempo e ao céu cinza dessa cidade, nesses dias estranhos em que o sol insiste em se esconder como se fosse uma menina que acaba de descobrir que tem peitos e que está pelada no meio da sala de aula. A Oito não é mais onde era. Mas ainda é a Oito. Ainda somos irmãos, ainda nos apoiamos e brigamos e bebemos e sabemos dos problemas uns dos outros, das dores, dos amores, das tragédias. Mas isso é assunto pra outra hora.