quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

"Black Brócolis..."

Quem me conhece sabe que eu gosto de cozinhar. Na verdade, eu adoro cozinhar. Eu amo cozinhar, se eu pudesse eu viveria dentro de uma cozinha infinita com vários temperos e ingredientes para que eu pudesse fazer o que eu quisesse à qualquer momento. Ok, mentira... Nem gosto tanto assim e nem sei fazer arroz. Mas desde que moro sozinho – e quando digo sozinho aqui quero dizer “sem meus pais” porque sozinho mesmo nunca morei, já passei por um pensionato, por uma república e agora estou dividindo um apartamento e o clima aqui é bem casa de família – faço meu próprio almoço, com exceção de algumas vezes nas quais comi no restaurante da faculdade ou comi coxinha (eu absolutamente adoro coxinha!).
Portanto, agora que voltei a morar sozinho, resolvi que era hora de voltar a fazer meu almoço e fazer o próprio almoço é uma atividade que, pra mim, começa ou no dia anterior ou no começo da semana, normalmente com a minha pessoa se dirigindo até o supermercado mais próximo para adquirir os itens mágicos que serão usados nas minhas receitas nenhum pouco elaboradas. Eu gosto de cozinhar, mas meu estilo de cozinha é o bom e velho improviso atômico desordenado caótico pseudocult retroalimentativo das linhas espináfricas da culinária italoasiática. Resumindo, eu compro um monte de coisa, misturo tudo e no fim fica bom. Essa semana não foi diferente. Fui na Coop aqui do Rudge Ramos e como era terça-feira o setor de horti-fruti estava com várias ofertas bacaninhas. Enchi meu carrinho de frutas, verduras e filé de flango e saí. Cheguei em casa guardei na geladeira o que precisava ir pra geladeira, na fruteira o que era da fruteira e coloquei o flango no congelador porque ele estava reclamando do calor. Arrumei tudo, comi uma ameixa e fui pra faculdade. Voltei, tomei uma água e dormi.

Acordei hoje, um pouco mais cedo que o normal, arrumei o quarto e fui fazer meu almoço – que pela primeira vez desde que eu voltei pro ABC foi em horário de almoço mesmo!
Entrei na cozinha e fiquei uns cinco minutos pensando no que é que eu faria, por fim decidi que seria arroz integral (sim, eu como arroz integral porque acho mais gostoso que o branco), salada de rúcula, alface e brócolis, couve refogada e frango com batata e curry. Pensado o que seria o almoço, me coloquei a trabalhar. Comecei temperando o frango com shoyo, limão, o curry e um pouco de alho, joguei tudo numa vasilha e deixei ele ali descansando pra pegar o gosto. Nesse meio tempo a água do arroz já estava fervendo (eu faço arroz ao contrário, fervo a água, jogo o arroz dentro e quando está no fim eu meto uma fatia de cebola e um dente de alho amassado, não frito, refogo, etc.) joguei o arroz lá, tirei o brócolis e alguns outros vegetais da geladeira, tirei o brócolis da embalagem e fui lavar a rúcula e o alface. Voltei pra pegar o brócolis e cadê? Ele tinha sumido.

Meu olho que tudo capta e nada vê logo teve sua atenção chamada para a bandejinha de plástico onde ele estava e na etiquetinha que dizia “Brócolis Ninja, rancho Miagui.” e então tudo fez sentido pra mim. Peguei a faca de chef que havia mais próxima, na minha mão direita e a faca de legumes com a esquerda e me preparei. Já havia lidado com brócolis ninjas antes, eles são soturnos, atacam pelas costas, usam venenos e fumaça pra te enganar, mas esse brócolis não contava com meu preparo em artes anti-brócolis. Pra quem não sabe eu morei um ano em Taiwan e lá tinha uma avó que matava baratas arremessando hashi ou chinelo ou shuriken nelas. E tinha um professor de culinária chinesa que me ensinou não só a lidar com brócolis ninjas, mas também com lulas gigantes assassinas, king crabs, baiacus e outros seres estranhos que normalmente chegavam vivos à cozinha e lutavam bravamente até a morte antes de irem pra panela. Mas hoje o clima estava diferente, o ar na cozinha era mais pesado, ativei meu hiperfoco e congelei no lugar esperando qualquer sinal de ataque por parte do brócolis. Foi então que olhei para o alface e percebi que ele estava com um olhar de terror olhando para algo que estava atrás de mim, me virei mais rápido que o mais louco de todos os gafanhotos e defendi o ataque que seria mortal! Só ai reparei que não era apenas um brócolis, eram vários! E eles não estavam com tocas ninja e quimonos pretos, estava com bandanas enroladas no rosto, alguns deles tinham vinagre nas mãos e outros alguns pedaços de pau e tacos de baseball. Então dei um grito e falei “Para lá, cambada! Que merda é essa?” e o que estava mais à frente tomou a voz do grupo e disse “Nós somos os Black Brócolis ninjas! A divisão black bloc dos brócolis!” e eu com cara de pseudocult cheio da sabedoria disse “Eu percebi, pelo nome... Mas e ai, que que vocês querem?” e todos eles responderam praticamente em uníssono “Acabar com esses sistema capitalista opressor que fere os direitos de todos os brócolis!” eu olhei pro lado e o alface estava com um olhar blasé e uma cara de “Ok, deixa esses meninos pra lá e vai cuidar do seu frango.” mas eu não podia deixar aquela oportunidade passar, estava diante de um movimento social broculento, algo único em qualquer cozinha do universo.
“Ok, falem mais.” disse eu, pausadamente e o brócolis líder respondeu “Nós estamos aqui para destruir esse sistema capitalista agressivo que abusa de todas as classes sociais, só favorece os ricos e explora os pobres! Vocês humanos querem nos devorar e se esquecem que nós temos sentimentos!” confesso que essa confissão de que brócolis também tem sentimentos me deixou um pouco confuso “Entendi, e como vocês pretendem fazer isso?” eu perguntei.
“Primeiramente, precisamos ganhar a liberdade dessa cozinha e tomar as ruas, pois só nas ruas nossa voz poderá ser ouvida.”

“Ok, mas eu estou com fome e estava planejando almoçar vocês...”

“Almoce o alface!”

“Mas alfaces também não tem sentimentos?”

“Não! Olha pra cara dele!” e quando olhei percebi que o alface estava com a mesma face de antes, um ar de “Terminem logo essa discussão, eu quero que meu fim seja breve.”

“Eles não tem sentimentos, humano! Eles são desse jeito, tanto fez, tanto faz. Esses alfaces são um bando de alienados, vivem de ver tevê lá na horta esperando o dia no qual serão devorados por vocês, tudo o que eles almejam é serem comprados por alguém que vá devorá-los com garfos de prata enquanto tomam um vinho caro ou por alguém que irá banhá-los em um daqueles molhos caros pra salada, aquelas merdas industrializadas desse mundo capitalista agressivo e desbrocoleano.”

“Desumano, não?”

“Desumano, desbrocoleano, desanimaliano, o sistema é osso, parceiro. Ele atinge todo mundo... Inclusive os alfaces, mas os alfaces fingem que não veem. Ai de repente o filho de um alface é sequestrado ou a mãe de um alface é estuprada e vira comoção nacional, eles fazem marcha lá na estufa com plaquinhas pedindo um basta na violência, falando que a rúcula e o agrião deveriam aumentar o policiamento e que a escarola é muito frouxa pra tomar posição.”

“Hmm, entendi... É, faz sentido. Mas você não acha que é errado isso? Vocês querem se salvar, mas vão deixar o alface ser almoçado por mim...”

“Mas ai é problema seu. Nós não temos culpa de você ter nascido um monstro devorador de legumes e vegetais inocentes.”

“Mas se eu não devorar vocês, eu morro de fome. Não dá pra sobreviver de pedras.”

“Seria uma bela injustiça com as pedras... Elas também tem sentimentos...”

“Entendi... Então é pra eu morrer de fome? É isso?”

“Não, coma alface! Já falei, eles não tem sentimentos, essa classe alfácica deve ser destruída, ela é a escória da salada! É sem sal, sem sabor, sem paixão pelas causas sociais, eles praticamente vivem em um mundo paralelo! São escravos do sistema!”

“Cara, eu estou te achando muito radical, sério. Vocês já leram algo sobre a origem do movimento black bloc? Sabem de onde vem a filosofia, como é articulada a coisa?”

“Não importa, não somos black blocs, somos Black Brócolis! Com os bês em maiúsculo! Somos a divisão de elite dos protestos dos brócolis ninja!”

“Eu sempre achei que fosse da política dos brócolis ninja atacar na surdina e sair fugidos pela madrugada antes que alguém percebesse...”

“Não, isso ai é tática das maçãs que de dia são de gala, mas à noite elas fuji! Mas antes nós também agíamos assim, aqueles que são comprados nas feiras ainda conseguem fugir, mas você viu como viemos embalados? Era uma bandeja de plástico por baixo e filme plástico bem preso por cima, você até precisou de uma faca pra abrir esse negócio! A gente só consegue fugir depois que a embalagem estiver aberta, mas normalmente as pessoas abrem a embalagem e jogam a gente na água quente! Você sabe quão cruel é isso? Morrer em água fervente?! Eles nem nos dão o direito a um golpe de misericórdia! Nosso principal protesto é esse, contra essas embalagens claustrofóbicas! Porque antes, quem comprava um brócolis ninja sabia que havia o risco dele sair correndo, mas agora somos vendidos como escravos, amarrados, lacrados!” houve então um buchicho entre os outros brócolis e um grito de “Viva a liberdade!” tomou conta da cozinha. O alface deu uma suspirada de tédio e a rúcula começou a bater com o caule na pia em sinal de impaciência.
“E tem mais! Nós brócolis só temos bons sentimentos! Já parou pra pensar nisso? Nós somos macios e saborosos porque nossos sentimentos são bons. Olha a rúcula por exemplo, ela é agressiva e revoltada, por isso tem esse gosto estranho. O almeirão é triste e chato, por isso ele é tão amargo, ele só tem sentimentos cinzas! O Alface é blasé e chato e por isso tem esse gosto de alface, ele não nutre paixões, ele é um escravo do sistema! Nós não! Mesmo diante a morte não nos damos o luxo de odiar aquele que nos destrói! Nos amamos vocês, mesmo sabendo que iremos morrer e quando vocês nos comem vocês sentem o nosso amor em suas bocas e esôfagos e estômagos! Algumas crianças percebem nossos sentimentos e por isso não gostam de brócolis, porque percebem que estão comendo um ser vivo e cheio de sentimentos, ai preferem comer nuggets... Porque não sei se você sabe, mas os nuggets são feitos de papelão, aquilo não é frango. Sério, acredite em mim, mais do que ser um brócolis, eu sou ninja, tenho acesso à informações secretas.”

“Ok, ok, vocês venceram, desçam da pia e podem ir embora. Não vou almoçar vocês, tem um frango temperado ali que logo logo vai pro forno e ele já está morto mesmo, não vai reclamar.” todos os brócolis então abriram um lindo e maravilhoso sorriso, eles então se abraçaram e cantaram um hino de vitória, depois dançaram um pedaço de alguma peça da Broadway em cima da minha pia e desceram pelo fio do micro-ondas. O líder dos brócolis então apertou minha mão e antes de partir um brócolizinho de óculos veio e cochichou algo pra ele que então me olhou com um ar complexo e disse “Hmm. O Brócolis Nerd ali me disse que você tem um blog e que está fazendo faculdade de jornalismo, é sério isso?” eu balancei a cabeça positivamente tentando não rir e ele disse “Se puder, defenda nossa causa publicamente, alerte as pessoas da crueldade do sistema capitalista agressivo violento e animalesco contra os brócolis, mostre ao mundo a realidade!” e eu balancei a cabeça lentamente como quem realmente concorda com isso. Eles então saíram pela porta da cozinha enquanto eu ia logo atrás, abri a porta do apartamento. Eles me deram um tchau caloroso e desceram pelas escadas. Eu voltei pra cozinha.