Ai você se pega em uma cidade na borda do Mato Grosso do Sul, uma das que mais crescem no país, no meio à todo o caos da industrialização e você no seu quintal, em um terreno gigantesco, com árvores pra todos os lados e uma casa relativamente pequena no meio disso tudo. Os passarinhos de longe ficam cantando e é aquele marasmo louco. Talvez não faça sentido algum ter abandonado a engenharia pra ir atrás de algo que você nem sabe o que é. Mas é isso que você quer. Uma vida simples e tranquila, mas nunca parada. Eu não aguento mais ficar em Santo André, eu preciso ir pra outro lugar, nomadismo. Não nasci pra ter casa, o lar é o corpo e todas as palavras, você percebe que não precisa de um lugar pra residir quando está residindo em si mesmo.
A calma, a paz, o caos, tudo no mesmo lugar, tudo em um peito só. A saudade da família que é consumida em poucos dias, em uma parede que se levanta com seu avô e seu pai, em uma viagem pra resolver os problemas de um aluguel com sua tia-avó, em um almoço que se faz com sua mãe. Nas tais pequenas coisas das quais eu falei há algum tempo. É nisso que reside o sentido das coisas, é isso que explica a minha vontade de simplesmente viver, a minha falta de ambição a minha vontade de ter uma horta em algum lugar de Minas e no mês seguinte sair de lá pra ir pra São Paulo, abrir uma casa noturna e ser feliz naquilo. A verdade é mais simples de se compreender e mais complexa de se aceitar, não é que eu não saiba o que eu quero, eu quero é tudo, eu quero é mais, eu quero a vida por completo, eu quero viver o que ela tem pra me entregar de bandeja e conquistar o que ela não vai me entregar de maneira alguma.
Entre um balde de cimento e outro que ajudo a encher e subir pra que o velho termine de levantar a parede penso que talvez eu seja uma cópia mal feita e melhorada do meu pai. Somos compostos das pessoas com quem convivemos, somos criados por nós mesmos usando tudo o que eles entregam pra que a gente cresça e se desenvolva. Eu tenho meus poucos ídolos, tenho alguns poucos exemplos de homem nos quais me inspirar. Um deles está ficando careca agora, com meia dúzia de cabelos brancos nascendo, mas o mesmo sorriso de sempre, os olhinhos espremidos atrás dos óculos que demonstram a calma e a maneira de levar a vida tentando fazer com que o dia tenha mais do que poucas vinte e quatro horas.
O outro, apesar de ser mais novo do que o barrigudinho dos recém nascidos cabelos brancos, já não tem mais cabelo, de uns meses pra cá começou a surgir em seu rosto uma barba, mas a cabeça continua calva e é melhor que seja assim. É estranho pensar que ambos tenham essa calma e paz de espírito em comum, é estranho pensar que eu busco em mim isso, que eu vejo neles a maneira simples de encarar e viver a vida. Simplesmente vivendo, aproveitando o que ela nos entrega pra ser aproveitado, vivendo, amando, se apaixonando e sendo aquilo que são. Homens.
Durante eras chorei pelo falecimento de um ser o qual nunca tive a oportunidade de conhecer, durante noites à fio eu questionava a existência divina num misto de ira e tranquilidade. Na minha cabeça era melhor não ter conhecido o homem que deu origem ao meu pai, pois todos dizem que somos parecidos demais em muitas coisas. Talvez não tê-lo tenha sido melhor do que perde-lo. Isso sempre gerou na minha cabeça a loucura de não ter conhecido a base da minha base. Mas nunca me fez pensar que existe a base da minha outra base. Minha mãe também veio de um saco.
E o portador desse saco agora levanta mais uma das paredes de minha casa enquanto conversa comigo sobre a horta que está plantando lá na cidade dele
"Passei a vida inteira trabalhando Luquinha, não ia parar agora que aposentei."
Nunca tive a oportunidade de conviver com ele, durante alguns dias dos pais eu o ia visitar na cidade na cidadezinha, não muito longe daqui, onde ele vive. Esse homem sempre fora uma incógnita na minha vida, um fantasma que sumiu muito antes de eu poder pensar em acreditar na existência de fantasmas. Minha mãe não tocava muito no assunto e ele se mantinha afastado. Vez ou outra íamos ver o velho em sua casa, na cidadezinha onde ele mora. Vez ou outra seu nome surgia, vez ou outra eu lembrava de sua existência e isso é triste.
É triste pensar que eu dou valor excessivo à um homem que já se foi e valor quase nenhum a um homem vivo.
E agora eu tento correr atrás do tempo que eu perdi. Mas não sei se ainda dá tempo, ou se eu tenho algum tempo. Logo logo eu embarco em mais uma de minhas aventuras e minha família fica aqui. Meu nomadismo latejante me diz que esse é o caminho certo a seguir. Não devemos perder tempo com os oásis, há muito deserto a ser desbravado. E entre criações e criaturas eu vejo que a vida é bem mais simples do que nós julgamos ser. Um dia eu tomo vergonha na cara, subo a montanha e fico lá pra sempre. Até lá, eu vou vivendo.