quarta-feira, 9 de maio de 2012

"Espíritos, almas e avós."

Era o mesmo clima de quase um ano atrás, o sol ali querendo chamar a atenção de todo mundo, trabalhando lento, e o vento vindo e trazendo um frio consigo, aquele velho e bom frio que me faz lembrar os primeiros meses aqui e era justamente ali que eu estava, tocando aquele interfone de novo.


"Gô! Sou eu!"
"Eu quem?!"
"Eu, o lobo mal!"
"Luquinha! Advinha?!"

"A tia Tata não trouxe a roupa ainda né?"
"É, ela vai vir amanhã só..."
"Mas abre ai Gô, eu to com meu almoço aqui fora."
"Ta bom, vou ai abrir."

Ela apareceu na porta, com aquelas luvas verdes de dona de casa, aquela cara alegre de sempre, caminhando a passos lentos, disse oi, abriu o portão, reclamou da minha barba estar muito grande e dos piercings, como sempre. Perguntou se eu não ia tirar esses ferros da cara.

Eu entrei, sentei no primeiro degrau da escadinha que da pra porta, peguei uma das coxinhas daquele saco de pão, abri minha coca e comecei a comer. Ela ficou olhando pela grade pro lado de fora com aquele olhar vazio.
Depois se sentou no degrau do meu lado.
"É, você é o filho que mais vem me ver... Era legal quando todo mundo estava reunido aqui, apesar dos problemas, das confusões... Vocês eram uma turma bem legal. Você tem visto a Jú?"

"Tenho sim Gô, ela ta morando ali perto da faculdade, na Oratório mesmo."
"Última vez que eu vi ela foi quando eu e a Tata fizemos nhoque."

"E você Gô, não vai embora daqui não? Você vivia reclamando desse lugar."
"Eu quero... Mas eu tenho medo dos meus planos não darem certo... Eu tenho medo de ficar desempregada Lucas." fez-se uma pausa longa, peguei a outra coxinha e voltei a comer, ela levantou e entrou.
"Onde cê vai Gô?"
"Vou lá dentro ver se tem algo pra comer, não almocei ainda."

Ela entrou e eu fiquei ali, sentindo o vento frio, lembrando da primeira semana. Ninguém se conhecia, eu dividia meu quarto com um cara que vinha de Minas e ia tomar banho cantando a música do Marssupilame, no quarto da frente tinha um maluco que se emocionava assistindo lançamentos de foguetes, tinha um outro que era viciado em tecnologia bélica, entendia tudo sobre tudo quanto é tipo de arma que existe no mundo.
Eu lembro de quando eu tive o primeiro contato com uma das únicas meninas da casa, tava todo mundo sentado na sala, lá em baixo, cada um com seu notebook no colo, imersos em seu próprio mundo, foi então que ela passou, ia sair com o namorado, não muito alta, não muito baixa, não muito gorda, não muito magra, alguma coisa nela chamava atenção, talvez fossem os cabelos vermelhos ou os óculos. Tinha um jeitinho nerd, dava pra se apaixonar.

De repente todo mundo se conhecia, a gente até sabia onde ficava Guanhães, todo mundo virou amigo, uns se suportavam menos que os outros, mas mesmo assim ainda eram amigos. Descobrimos a passagem pro País das Maravilhas, um lugar onde a gente passava horas conversando e sentindo o cheiro da fumaça do L.A. de cereja da menina dos cabelos vermelhos.
Quebramos todas as regras que tinham para serem quebradas só pelo gosto de quebrar as regras, não era algo do tipo anárquico ultra hardcore, não tínhamos a intenção de transformar aquele lugar numa bagunça geral, tanto que as quebradas de regra que a gente dava sempre eram das formas mais bestas possíveis. Era só pela emoção de fazer algo que não era pra ser feito. Tínhamos voltado a ser adolescentes; rebeldes com uma única causa: diversão.

Esse era o espírito da coisa, se divertir. Fosse passando a madrugada jogando no terceiro andar ou criando um plano maligno para poder trazer alguma menina para o nosso quarto sem que a governanta visse. Era só pela diversão.
Nunca foi tão divertido esconder uma garrafa de velho barreiro dentro da descarga ou se reunir em oito pra beber meia dúzia de heinekens.

Muitas coisas aconteciam só pelo prazer de sacanear. Era comum ouvir Pôneis Malditos às duas ou três horas da manhã tocando super alto no corredor ou ouvir o barulho de alguém arranhando a sua porta só pra te assustar. Acordar cedo e ter algum bilhete tosco na cozinha escrito pelo espírito que vagava pelos corredores daquele lugar ou abrir a geladeira pra comer aquela barra de chocolate que você deixou escondida ali e descobrir que ela tinha sumido e no lugar ficou um papelzinho com: "Foi mal, tava com fome, te pago outra depois! :)"

Não sei se era o frio, se era a nossa "inocência" ou se era o fato de sermos os primeiros contatos uns dos outros num mundo completamente novo pra nós. Mas sei que aquele inferno onde vivemos guarda muita lembrança boa.