Eu estava ali, apoiado nos cotovelos, olhando pela janela do trem, eu vi o anão de jardim ruivo entrar, gritei ele mas ele não me ouviu, continuei ali parado olhando pro nada, pensando sobre tudo aquilo que eu escrevi ontem, sobre o arrependimento, sobre o que uma amiga - quase irmã - da minha irmã me disse, sobre essa idiotice de achar que ir pra Três Lagoas é uma tortura e não um alívio... Eu já tinha esquecido disso, eu não vou pra lá por causa da cidade ou por causa de amigos ou por causa do clima, da lagoa ou por causa das capivaras que vivem ali. Eu vou lá por causa da minha família.
Acho que eu já deixei clara a minha opinião sobre a instituição familiar, acho algo completamente maluco isso, você está ligado única e exclusivamente por um laço de sangue por pessoas as quais você não escolheu se ligar.
É complicado.
E é bem mais complicado quando não é o sangue que te une e sim um papel ou vinte e tantos anos de convivência. Família não é uma coisa que foi feita pra dar certo, mas também não é pra dar errado, no fim das contas praticamente todo mundo se ama e os que não se amam sabem fingir muito bem.
Mas não é sobre isso que eu estava aqui pra escrever...
Voltando ao trem...
"Estação Prefeito Saladino." e eu desço, olhando pro nada, já fazia mais de uma hora que eu tinha acordado, mas meu cérebro não estava funcionando direito ainda. Como sempre.
Desci, passei pela catraca e sai da estação, parei na barraquinha do Marquinho, onde eu tomo café da manhã sempre que volto de Três Lagoas...
"Fala ai Marquinho, duas coxinhas eu uma coca, to sem comer a madrugada inteira cara."
"Ta ai barbudo."
Comi minhas coxinhas numa boa enquanto olhava pra cidade, de onde eu estava dava pra ver as árvores da Prefeito Saladino, uns prédios ao fundo e o sol atrás deles, uma visão foda. Mesmo pra mim que tenho dezenove anos e penso como um velho chato e tedioso de setenta que acredita que o mundo seria melhor se houvessem menos prédios e mais árvores. Sinceramente, a visão talvez não fosse tão legal se não houvessem os prédios.
Eu dei um sorrisinho besta olhando pro nada. "Ta apaixonado Marcelo Camelo?" voltei pra realidade, era um motoboy, do meu lado com o capacete na mão "Marquinhos, vê um pretinho puro pra mim." ele disse e voltou a olhar pra mim como quem esperasse uma resposta.
Olhei pra ele e comecei a falar.
"Já que você está ai interessado, vou te contar uma história de amor, um tanto comum.
No começo, eu a odiava, dizia que era feia, complicada, chata mesmo, confusa, meio maluca, dizia que fedia, que não era legal, não ia se dar bem comigo. Dizia que era ódio mesmo. Não entendia como muita gente podia amar de paixão essa velha de quatrocentos e tantos anos ou qualquer uma das suas filhas... Não entendia Sampa do Caetano, achava que isso aqui estava mais pra Não Existe Amor em Sp, do Criolo... Hoje, eu ainda não entendo aquilo, ou isso, mas estou cada dia mais me apaixonando, não só por São Paulo, mas por tudo que cerca ela. Eu moro em Santo André, mas sofro influência direta de sampa.
É muito maluco isso. É rápido, caótico, violento, mas ao mesmo tempo em algum lugar, é lindo..."
"É, barbudo, poético isso... Mas pouco realista, deixa eu ir nessa que eu, ao contrario de você, não tenho tempo pra pensar nessas coisas, tenho um filho pra alimentar, conta pra pagar e muita coisa pra entregar... Falou ai Marquinho! Até amanhã!"
Colocou o capacete, montou na moto e sumiu. Eu fiquei ali mais uns cinco minutos viajando na batata, paguei e parti. Atravessei o pontilhão pensando em coisas aleatórias, senti o cheiro horrível do Tamanduateí e fui pra minha casa quase em paz pra chegar lá e descobrir que estava sem chave. Mas isso é outra história, talvez pra outro dia...