Voltei ao timão totalmente cabisbaixo e triste, ia levar um tempo para que eu entendesse que as coisas seriam daquele jeito, de novo. Toquei o Hamster na direção que ele deveria ir, o resto da tripulação fingiu que nada tinha acontecido, vieram falar comigo, eu dei respostas curtas e me mantive concentrado, tínhamos um destino.
Reanalisei toda a rota, pedi para verificarem as condições do vento, e chamei outra pessoa pra tomar cuidado da direção do navio, eu não estava lá tão bem e sei bem que um capitão triste é péssimo pra moral da tripulação.
Quando entrei na cabine havia um pombo bicando a janela, querendo entrar, vi um bilhete preso ao pé dele e resolvi abrir. Ele entrou, eu peguei o bilhete. Já fazia uns dois ou três dias que eu estava navegando sem a minha querida imediata, tinha mais gente comigo, mas na verdade isso não importava tanto.
O bilhete do pombo dizia "Muito obrigado por se referir à mim como alguém orgulhosa e egoísta. Sou tão egoísta, mas tão egoísta que só me dediquei à você durante 352 dias porque não tinha nada melhor pra fazer, ao invés de levar a vida que eu tinha antes, eu só tentei fazer de tudo pra te ver feliz." e isso bateu pesado, me fez repensar muitas coisas voltei pro timão gritando com todo mundo, era pra diminuir o fluxo de matéria onírica pra que a gente perdesse altitude, era pra trocar de corrente de vento, girei o timão de uma vez só, o navio quase tombou, ninguém entendeu o que estava acontecendo. Mandei armarem todas as velas do barco, eu queria o máximo de velocidade possível, talvez ainda desse pra resolver.
A minha atenção era total, talvez o pombo viesse de algum outro navio, talvez ela mesma tivesse conjurado o pombo, acidentalmente - nem ela sabe direito os poderes que tem - por estar com muita raiva de mim, talvez fosse uma armadilha. Voltei ao ponto exato onde ela se jogou, olhei pra baixo e a vi. Agradeci porque o Mar da Indiferença é espesso e denso, as pessoas demoram um pouco pra afundar. Ainda restava um pedaço do corpo dela pra fora. Mandei arremessarem as ancoras e mal tinha terminado a frase já pudi ouvir o barulho das correntes correndo e em seguida o barulho pesado delas caindo naquele lugar.
Amarrei uma corda nos pés e me joguei. A queda é longa, na hora você pensa em tudo, acha que está errado, acha que está fazendo a maior merda do mundo, que aquilo ali é um erro, que não vai resolver nada e de repente você está com os braços em volta do corpo dela, de ponta cabeça, com uma corda presa aos tornozelos. Agarrei ela pelo tronco e fiz força pra tirar ela de lá. Eu não entendi o que aconteceu, mas ela simplesmente saiu, fácil, fácil até de mais. O transe passou e ela sorriu, não havia nada pra discutir.
Gritei e eles nos puxaram pra cima. Ela sorria e chorava, e eu só a abraçava, eu sou um capitão, não posso ficar chorando.
Eu fiz exatamente o que disse que faria, olhei fundo nos olhos dela e disse "Vai lá, toma um banho, troca de roupa e vamos dar uma volta." ela enxugou as lágrimas na minha farda. Eu pedi desculpas, ela pediu desculpas, a gente se abraçou mais um pouco e ela então foi, se trocou e voltou.
Ela voltou a ter um capitão com quem contar, e eu voltei a ter uma imediata, bruxa, guerreira, entre a minha tripulação. Mas tudo mudou, ela voltou a voar e isso é muito bom.
Essa é a parte que me espanta, ela tem asas, ela pode ir pra qualquer lugar, ela pode parar em qualquer outro navio, ela pode simplesmente voar por ai sozinha, sem se preocupar com nada nem com ninguém e mesmo assim, ela ainda prefere navegar ao meu lado.
"E há quem diga que não existe amor."