sábado, 14 de dezembro de 2013

"De nada adianta um capitão, sem um papagaio no ombro."

Eu consegui um emprego no porto. É, no porto. Em Três Lagoas.
Sim, Três Lagoas, apesar de não ser uma cidade na beira da praia tem porto já que existem dois rios enormes que passam por aqui e são muito bem utilizados para o transporte hidroviário. No meu caso, eu consegui um emprego no porto de uma fábrica de celulose, pra trabalhar no descarregamento de madeira e no carregamento de celulose. É um trabalho simples, pouco cansativo, está me rendendo um dinheiro bom e o melhor de tudo: É da meia noite às oito da manhã, justamente o meu período natural de ação morceguística.
Basicamente o que faço é subir com uma ponte rolante na barcaça carregada de eucaliptos, prender o gancho do guindaste nos cabos de aço que prendem a madeira, sair de lá com a ponte rolante - mas dessa vez carregando uma quantidade considerável de madeira comigo - parar na carroceria das carretas que fazem o transporte da madeira do porto até o picador e soltar os cabos de aço. É uma operação que leva em média quinze minutos em qualquer outro turno, mas que na madrugada demora sete, oito minutos no máximo. O que nos rendeu o singelo apelido de Esquadrão Flash. Mas não é sobre a minha incrível capacidade de levar pau de um lado pro outro que eu vim até aqui.
Eu vim pra falar da minha gata roqueira, brigona de rua, matadora de pombos, caçadora de dinossauros, aquela piratinha louca que não tem um olho, nem os bigodes, nem noção de nada, a Sindel...
Miaaaaaaaaaaarh!


Então, essa é a Sindel, pra quem ainda não conhecia. Esse pequeno felino foi resgatado por mim numa noite fria de solidão em Santo André enquanto miava incessantemente e tentava se esquivar de uma vizinha minha que ficava jogando água gelada nela para que parasse de miar e gritar. Nessa época ela devia ter, se muito, uma semana de vida, era feinha, estrainha, tinha um olho meio fechadinho, morria de medo de tudo e de todo mundo e a Leia - minha outra gata, a princesinha, mimada, nojentinha que eu tanto amo - vivia atacando a criaturinha toda vez que ela ousava sair de baixo do sofá. Foi então que a Sindel começou seu treinamento ninja autodidata, ela precisava sair de seu esconderijo nada secreto - o forro do sofá - e ir até a cozinha, caso ela quisesse comer ou beber água ou fazer qualquer outra coisa, e tinha que fazer tudo isso sem deixar a Leia a ver, afinal de contas, caso essa chata visse a Sindel andando pela casa ela saía de onde estivesse e vinha correndo atacar a piratinha, que na época era só um filhotinho lindinho e caolho que miava fininho e nós tanto amávamos. Esses foram os meses nos quais entendi que gatos são as coisas mais fofas e lindas do mundo. Com o tempo elas pararam de se atracar e a Leia foi cedendo espaço e pegando amizade, elas começaram a dar rolês por ai, a Sindel ensinava a Leia a caçar furtivamente enquanto a Leia dava umas dicas de maquiagem pra ela. Não só maquiagem, como etiqueta, modos, ensinou que ela não devia arrotar à mesa, nem falar palavrão perto de estranhos, ou ficar correndo por ai com barata na boca só pra mostrar o quão exímia caçadora ela é. Isso foi quando eu ainda morava em Santo André, em uma casa pequena, duas suítes, cozinha, sala, varanda e quartinho no fundo, que dividíamos em sete pessoas, dois gatos e um hamster que ninguém sabia se era macho ou fêmea e por isso alguns os chamavam de Frodo, outros o chamavam de Xena, mas não importava o sexo do bichinho, o que importava é que ele(a) era tão louco(a) quanto qualquer outro ser daquela casa e normalmente passava o dia todo fazendo barra ou correndo na rodinha enquanto planejava uma fuga espetacular daquela sua prisão de barras de aço e serragem.

As gatas foram crescendo, eu larguei a faculdade, a casa, os amigos, a mulher, a vida que eu tinha em Santo André, pra ir atrás de um "sonho" que eu nem sabia se era mesmo um sonho ou só um devaneio estranho de um rapaz perdido que na falta de um alvo atira pra todo lado achando que onde quer que o tiro pegasse o lucro viria. Vim pro Mato Grosso do Sul, de volta. Abaixei a cabeça, resignei da vida e vim morar no interior, na casa dos meus pais, e trouxe as gatas comigo. Elas enfrentaram as dez horas de viagem numa boa, miando vez ou outra pra reclamar de fome e dormindo na maior parte do tempo. Quando cheguamos aqui e eu disse "Meninas, essa é a nova casa de vocês." e apresentei a elas o terreno monstruoso da casa de meus pais, com árvores frondosas, grama verdinha e um muro chapiscado coberto de trepadeira onde vários calangos soturnos e mal encarados se alojam para discutir, através do balançar de suas cabeças, planos malignos de dominação mundial, elas surtaram... Positivamente e negativamente. A Sindel fez cara de "Hmm, mais terreno, mais árvores, mais verde, mais sombras, mais lugar pra eu me esconder e treinar." e a Leia olhou pra mim e disse "Pai... Tem alguma balada aqui perto ou só mato e boi?" e fechou a cara quando eu disse "Só mato e capivara, amor... Boi não tem, eles arrancaram o pasto pra plantar eucalipto." ela bateu o pé, miou, reclamou, mas no fim das contas acabou pegando gosto pelo lugar. O sofá era mais confortável, a casa era mais limpa e havia um lugar legal e alto onde ela podia se sentar pra tomar sol e tirar um cochilo sem ser perturbada. Nessa época, ela ainda não sabia que havia quatro mini gatos alojados em sua barriguinha felina.

O tempo passou, a Leia deu luz à quatro criaturinhas ultra mega super fofas das quais duas foram doadas e outras duas ficaram aqui, para serem criadas com sua mãe. No começo a Sindel achou estranho, ela entrava no quarto, sentia o cheiro dos gatinhos e começava a rosnar, ela fugiu de casa uns dias e quando voltou eu a chamei pra bater um papo e ouvi dela: "Relaxa, eu tava puta de ciúmes, vocês só dão atenção pros bichinhos novos e esqueceram de mim... Mas ai eu fui lá e saí na mão com um siamês gente boa que mora a duas quadras daqui. Ele é até fortinho, mas não aguentou o tranco. Você sabe como é né pai? É sangue do ABC paulista que corre nessa veia aqui..." e eu ri enquanto ela fazia um muque com o braço direito e batia nele com o esquerdo. Então perguntei se ela estava bem e ela, depois de pular no meu colo e ronronar disse que estava, mas não era pra eu esquecer de sua existência, depois ela foi até o quarto, deu um beijo na testa da Leia e virou a melhor tia que qualquer gatinho pode ter, ensinou eles a lutar jiu-jitsu, a se esconder no forro do sofá, a pegar calangos e baratas e até mesmo pombas em voo, ensinou técnicas especiais de camuflagem para se esconder da Mitcha e maneiras furtivas de entrar na cozinha e roubar comida na frente de todo mundo, usando a técnica da "fofura do olhar suplicante" para invadir os corações humanos e dominar suas mentes.

Um belo dia a Sindel chegou em casa um tanto diferente, um pouco mais alegre, mais saltitante, estava meio aérea, suspirava pelos cantos e vez ou outra entrava com a Leia pro quarto e quando eu chegava lá elas estavam discutindo sobre maquiagem, chapinha, política felina - foi quando que eu descobri que aqui nesse bairro o sistema adotado é uma gatocracia democrática de esquerda, comandada pelo gato persa do vizinho do fundo - e sexo... A Leia já era adulta, mãe solteira de quatro filhos, e desde que viera para o Mato Grosso do Sul estava dedicando seu tempo quase que integralmente a suas criaturinhas, e a Sindel sempre foi mais moleque, nunca se interessou por homens, a menos que fosse pra trocar porrada e tirar um jiu-jitsu, mas parecia que minha filhinha recém saída da adolescência estava apaixonada... E ela realmente estava. Eu até hoje não sei por quem... O que importa é que há algumas semanas ela estava um pouco diferente, a barriga começou a crescer, e quando a gente tocava no assunto ela se esquivava como um ninja e se limitava a dizer que estava gorda e precisava de um regime, mas estava na cara que novas criaturinhas vinham por ai. E então eu comecei a trabalhar no porto...
Comecei a passar as madrugadas descarregando barcaça, enchendo carreta e tentando não morrer quando as toras rolavam pro lado na tentativa escrota de me quebrar a perna. Um belo dia eu cheguei em casa e a Sindel estava deitada, em frente a porta do quarto dos meus pais, de frente pra porta, dormindo. Meu instinto paterno me disse que havia algo errado com ela, mas eu estava morto de cansaço e fedendo a jaula, tomei um banho, fiz um carinho nela e fui dormir. No dia seguinte, a mesma cena, ela estava exatamente no mesmo lugar... "Ô coisinha... Está tudo bem contigo?" eu perguntei com minha voz amorosa de quem está profundamente preocupado, ela se limitou a olhar pra mim com um olhar de piedade e dor e disse "Não... Eu acho que perdi meu bebê, ta tudo doendo aqui dentro da minha barriguinha, pai. Me leva no médico? Eu não to bem, eu to fraca..." eu fui pega-la no colo e ela pediu pra tomar cuidado, porque tudo doía, ela estava fraca a ponto de não conseguir ficar em pé, me olhava com cara de dor e batia os dentes de frio, mesmo nesse calor louco de Três Lagoas. Eu corri com ela pro veterinário e como eu nunca precisei enfrentar uma situação dessas fui atrás da primeira opção que me veio à mente, a veterinária da casa de ração onde eu compro a comida dos bichinhos. Ela mediu a temperatura, verificou os batimentos cardíacos e disse que a Sindel estava desidrata e que provavelmente havia sofrido um aborto espontâneo, a temperatura dela estava quase cinco graus abaixo do normal e o coração estava batendo lentamente. Eu mandei ela ser forte e segurar a bronca, quem já ganhou o troféu do campeonato sul matogrossense de caça aos calangos e já enfrentou a Mitcha cara a cara diversas vezes, não podia deixar a peteca cair nessa hora. Ela tentou sorrir, mas não conseguiu. A moça disse que precisava fazer um ultra som e que dependendo da situação teria de fazer uma cesária de emergência para retirar o feto, caso ele ainda estivesse ali. A Sindel assustou "Eles vão abrir minha barriguinha?" e eu, tentando acalmá-la disse que só em último caso. Saímos de lá e fomos para outro veterinário, já que lá na casa de ração eles não tinham aparelhagem pra fazer o que precisava ser feito. Chegamos no consultório com a Sindel desmaiada no meu braço, ela apagava e voltava, estava fraca até pra pensar. Eu pedi pra ela segurar as pontas e comecei a orar pra Ailuros e pedir para que ela não levasse a Sindel para os campos infinitos da alegria felina, onde todo gato tem seu próprio novelo de lã e os ratos são gordos e suculentos e com variados sabores, onde o leite nunca acaba e há sempre um feixe de laser a ser perseguido. Ailuros me ouviu e tirou o veterinário do seu almoço para que ele me atendesse "Primeira coisa, eu vou aplicar umas injeções nela, ela está com uma infecção e isso é claro. E já vou preparar o soro, que ela está extremamente desidratada e pode agradecer a Deus ou a seja lá quem for, mais uma hora ou duas e essa gata não ia sobreviver não." ele então aplicou o soro, depois aplicou o remédio direto no útero dela e por fim a colocou no soro "Volta lá pelas quatro, cinco horas da tarde que ela vai estar bem melhor." eu então dei um beijo na testa dela e disse que mais tarde voltava pra lhe buscar e disse que era pra ela aguentar firme que o pior já havia passado.
Cheguei em casa, sentei e fui conversar com a Leia sobre o que havia acontecido. Ela ficou triste com fato, deu um sorriso sem graça de canto de boca e falou que já estava até alegre que ela não ia mais ter de alimentar os pequenos, já que a Sindel ia começar a produzir leite... Eu tentei rir também, mas a preocupação não deixava. Esperei dar o horário, buscamos a Sindel e voltamos pra casa. Ela estava bem melhor, já conseguia andar, mas ainda sentia dores. Passou os últimos dois dias deitada e eu trabalhando sem parar, dobrei turno essa semana, trabalhei dezesseis horas seguidas, dezesseis malditas horas pensando se a minha gata estava bem em casa, se estava viva, se estava com dor, se estava sem, dezesseis horas esperando chegar em casa e ver ela com aquele sorriso besta dela deitada na varanda observando os pássaros e tentando escolher qual deles ela ia assustar. Mas quando eu cheguei em casa ela estava deitada, fria como uma pedra de mármore na caminha bem feita que a gente deixou atrás da porta, num lugar com pouca incidência de vento. Eu fiz carinho na cabeça dela, ela abriu o olho e me encarou com cara de nenhum amigo "Me interna. Eu to morrendo..." disse isso com uma seriedade fora do comum, as palavras saíram de sua boca quase que imperceptíveis. Eu peguei ela no colo e fomos de novo voando pro veterinário... Ele a internou e disse que teria de fazer uma cirurgia para remover o útero dela. Ela me encarou e disse "É o último caso?" e eu disse "É... Eu não quero te perder, amor... A gente passou por muita coisa junto pra você me abandonar agora por um problema no útero..."

Não a vi desde então. O veterinário disse que ia ligar caso alguma coisa desse errado... Vinte e quatro horas, doze minutos e alguns segundos atrás. Vinte e quatro malditas horas torcendo pra que o celular não toque e eu não ouça alguém dizendo "Lucas... Desculpa, mas ela morreu.."
E enquanto espero eu fico aqui sentado no sofá, com lágrimas nos olhos, torcendo pra tudo dar certo. Eu não quero perder minha gata, eu não quero perder minha filha, minha piratinha... Eu quero ver ela entrando em casa de novo, comendo os calangos e correndo por ai, eu quero ouvir ela ronronando no meu colo, com aquele olhar tranquilo e caolho dela. E eu prometo que nunca mais brigo com ela por ela deixar as cabeças de pomba no pé da minha cama...