Mas não é de auto flagelação que eu estava quase chorando, é algo mais pesado, é ultra auto flagelação psicoemocional.
Dois dias atrás eu estava sentado num banco, sozinho em casa, pensando na vida. Vez ou outra isso é altamente prejudicial, depois que se vai morar longe e se "esquece" a família principalmente. Dia doze do mês passado comemorou um ano que eu estava aqui, pouco tempo comparado aos outros setenta e tantos os quais eu vou viver, eu sei e não era para doer nenhum pouco depois de Taiwan - ficar um ano longe é uma coisa, ficar um ano do outro lado do mundo é outro, completamente diferente, estou a um ônibus da minha família e não vinte e duas horas de avião.
Imagine que me vieram cenas em mente que não deveriam me vir na mente, coisas tristes mesmo, existem muitas coisas as quais eu deveria dizer para a minha família e que eu acabo nunca dizendo, perco tempo de mais com dilemas existenciais e problemas que não existem e não me preocupo com o que realmente importa - e não, isso não é papinho de autoajuda/filme inspiracional. Acredito que, infelizmente, seja assim com quase todo mundo.
Antes que venham me corrigir e perguntar a respeito o que eu disse meses atrás sobre a instituição familiar, entendam que de fato eu não acho que é algo que é feito para dar certo, existem tramas e complicações dentro de todas as famílias, cada uma guarda os seus mistérios e segredos, feridas nas quais ninguém toca, seja pra curar ou pra abrir mais, assuntos intocáveis, caveiras no guarda-roupas que despencarão na sua cara caso você resolva abri-lo pra caçar algo. Família é assim, as vezes fede, as vezes é uma merda, da uma puta dor de cabeça, as vezes você se pega perguntando por que você "tem" de amar aquele povo, te garanto que na sua família deve haver pessoas as quais você não suporta, é assim em todas.
Acontece que família é família e ponto final. Não temos a obrigatoriedade de amar cada um dos quatro mil trezentos e vinte e sete vírgula trinta e dois membros das nossas famílias, é claro isso, mas o tal do "main core" familiar, o centro do centro da família, são e sempre serão os primeiros seres a te dar amor. É claro que existem lá exceções, mulheres que jogam as crianças nos rios ou pais que as sentam a mão por nada, mas no geral eles costumam ser nossa fonte primaria de amor e assim serão durante anos.
O problema é não termos dimensão disso.
Meu pai profere uma frase clássica, ele diz que só se sabe o que é ter um pai quando se perde o teu. É, não é uma realidade fácil de encarar, mas é a mais pura verdade. Você só vai entender o peso da existência de qualquer familiar seu quando eles desaparecerem, quem já perdeu parente próximo sabe o que é isso e eu que nunca perdi simplesmente sofro por antecipação. É complicado ostentar uma face fria ao mundo, esbanjar dureza e sentir no fundo do peito uma solidão maior que a fome de qualquer menininho da Etiópia.
E a fome dos meninos da Etiópia me faz pensar no simples fato de não termos problemas e ao mesmo tempo termos muitos problemas, porque a noção de problema é diferente. Há uma meia dúzia de humanos para os quais viver sem carro é um enorme problema, há outros que acham péssimo andar por ai sem roupa de marca e há aqueles que simplesmente choram ao ouvir "Se puder sem medo" do Oswaldo Montenegro e pensam na morte e na partida de cada familiar, mesmo sabendo que a musica foi obviamente escrita para uma mulher, mas ela se encaixa muito bem em qualquer partida de muitos entes próximos.
"Deixa tudo que eu não disse mas você sabia
Deixa o que você calou e eu tanto precisava
Deixa o que era inexistente e eu pensei que havia
Deixa tudo o que eu pedia mas pensei que dava"
Ih caralho, entrou um cisco aqui, vou ali morrer tirar e já volto...
E eu não acho que seja só eu que tenha esse medo irracional de um belo dia receber uma ligação que simplesmente me faça pensar "CARALHO! Não! Tinha muita coisa pra ser dita ainda, tinha muito pra viver ainda caralho... Não! Ta errado isso ai! Deus, renova o contrato amiguinho, para de pagar de louco!"
O desespero maior? A imprevisibilidade. Você simplesmente cai, não surge uma placa na sua cabeça dizendo a hora, o lugar, o motivo, você só cai, alguém puxa seu cabo e você é desconectado da Matrix, pra sempre.