terça-feira, 15 de junho de 2010

"Escorpatraça baratal dos grilos negros."

Eu já falei de baratas e de aranhas, já comentei sobre os ratos que aqui habitam e já expliquei que grilos e gafanhotos são meus amigos mas nunca dormi com um escorpião...

Hoje eu vou trocar de casa mais um vez e ontem eu estava a arrumar as minhas coisas, em meio a toda a organização e movimentação de tralhas, que nunca ouviram falar em pano úmido ou vassoura, eu me deparei com uma meia dúzia de insetos. Foi uma noite tensa...

As malas já estavam quase feitas, faltava só colocar uma meia dúzia de coisinhas na mala menor e colocar os papeis na mala maior ai era só fechar e descer as malas, na teoria era só isso mas eu resolvi dar uma geral no quarto também e saí catando lixo e colocando em sacolas e organizando tudo certinho, enquanto eu organizava as coisas eu senti um impulso de abrir a caixa de documentos e rever o que tinha lá dentro. CPF, RG, Passaporte, passagens antigas, fotos de amigos, cartas, traça, presentes, chaveiros... Epa! Uma traça! Rapaiz, eu surtei...
Olhei pra ela com aquele olhar fulminante e já falei: "Sái daqui fí do demonho, vai comer papel de outro, tem um monte de livro alí na estante e você vem comer justo os meus documentos?"
Ela, com aquele olhar de sábio chinês, enquanto mechia seu corpo gordo branco e pesado, disse que já havia comido um pedaço de cada um daqueles livros e agora estava em busca de um conhecimento diferenciado, de algo internacional.
Ela falou com um certo desdém e isso me irritou profundamente, eu já estava meio estressado por estar arrumando as minhas coisas e o olhar de desdém dela somado àquele chinês arrastado me fez ficar com o sangue nos dentes, nos encaramos por uns cinco segundos e eu utilizei de todo o meu conhecimento de Kung Fu que aprendi com a avó da primeira família para desferir um golpe mortal na traça que apesar de gorda e aparentemente pesada simplesmente saltou e passou por cima da revista que eu estava usando para tentar mata-la.
Após o salto ela caiu próxima ao meu pé e tentou me atacar mas eu fui mais rápido e com um incrível movimento repentino eu joguei ela contra a parede e em seguida tirei o anel que fica no meu dedo e arremessei contra ela. Strike!

Continuei arrumando as coisas como se nada tivesse acontecido, mechi nos papeis, tirei uma meia dúzia de coisas que precisavam ser tiradas e coloquei no lixo, peguei mais um meia dúzia de coisas e coloquei na caixa, separei umas coisas pra cá e outras pra lá e no fim tudo estava resolvido. A hora que eu levantei a caixa de documentos lá estava uma mini barata olhando pra mim com cara de piedade dizendo: "Não me mata não tio! Não me mata não! Eu sou só um baratinho pobre levando a vida vendendo chicrete no sinalero, faz favor tio, me mata não!"
Claro que com aquela cara de dó e aquela roupa maltrapilha, além do incrível odor que ele exalava, eu fiquei com dó e resolvi não matar o pobre baratinho e de quebra ainda comprei um chiclete dele em troca de ele não aparecer mais no meu quarto. Ele disse que tinha medo de ir pra cozinha porque lá haviam baratas grandes que dominavam a região e não deixavam ninguém mais entrar na cozinha sem pagar uma taxa de admissão.
Ele foi meio folgado, pediu para que da próxima vez que eu fosse até a cozinha conversasse com um dos chefes da tribo baratal que lá habita e intervisse por ele, falei que ia pensar no caso e agora vejo que não vou poder ajudar o pobre baratinho porque ue vou trocar de casa às seis horas da tarde e a reunião do conselho baratal é à uma e meia da manhã lá na cozinha.

Continuei arrumando as coisas enquanto um casal de grilos cantavam na sacada, eles aparentavam estar bebados, pelo menos era o que a vóz deles indicava. No começo eles estavam cantando bem mas conforme o tempo foi passando eles foram desafinando, ao que eu entendi eles estavam na sacada bebendo algo. Fiquei curioso e fui lá ver, me deparei com uma cena horrenda, dois grilos pretos sentados na minha sacada, um deles com um violão na mão e o outro cantando, do lado dos dois estava uma garrafa de cachaça brasileira que a Alice me deu a um tempão atrás. Eu fiquei terrivelmente nervoso afinal de contas os caras vem e roubam a minha cachaça assim do nada e de quebra ainda ficam buzinando na minha orelha madrugada a dentro.
Cheguei causando já e peitando os dois, mandando eles irem embora e não voltarem mais.
Eles reclamaram e falaram algo em grilonês que eu não entendi e se foram. Fiquei sozinho no quarto arrumando as coisas de novo.

Desci pra tomar uma água e no meio do caminho eu ví meus sapatos, lembrei de precisava guardar eles na sapateira e depois colocar na mala, a sapateira estava no meu quarto dentro do armário e só tinha um sapato social lá dentro. Subi com dois pares de cuturnos em uma mão e na outra eu carregava o meu all star e o tênis que eu usava pra correr e andar de bike a uns meses atrás quando eu era um cara mais próativo.
Cheguei lá e achei a sapateira, meti a mão e peguei ela. Senti algo subir pela minha mão e já achei que fosse uma barata e isso seria normal por alí mas quando olhei ví que a coisa era preta e não marrom e que tinha mais de seis patas, pensei em uma aranha mas lembrei que as aranhas taiwanesas são grandes, peludas mas acanhadas e costumam não atacar não. Só as aranhas de cidade grande que atacam, essas sim atacam, babam, gritam e até fumam.
Foi então que eu reparei em dois braços e duas garras nas pontas dos braços e uma longa cauda reta e fina apontando pra cima, na hora eu senti um leve cheiro de vinagre cobrir o ar e no exato momento que o meu cérebro ligou a figura à criatura o meu braço teve um espasmo que fez o bixo voar longe, mas ele era mais meticuloso e rápido do que eu imaginava, enquanto estava no ar ele se posicionou de modo a cair com as patas apontadas para a parede e quando ele acertou a parede ele já se fixou e ficou lá olhando pra mim enquanto mechia o rabinho.
Acho que nós ficamos nos encarando por horas em um misto de torpor, medo, ódio e apreensão, cada um analizando os mínimos movimentos do outro, foi ai que ele tomou a palavra e disse em tom áspero e arrogante:
"Tu ousaste me tocar com essa mão fétida que só faz destruir, agora estou infectado com esse odor de ser humano e sinto o ar impregnar com o cheiro pesado do seu ódio pelas criaturas de minha raça."
Eu disse que nada tinha contra a sua raça e que meu problema era com os parentes próximos, as aranhas. Ele, rápida e rispidamente, respondeu que se caso eu não gostasse de aranhas, cravos, carrapatos e opiliões então eu estava, mesmo de forma indireta, não gostando dele e de sua gente também. Eu dei de ombros e já me preparei porque sabia que dalí em frente a coisa ia ficar mais arriscada, eu podia ver um sentimento estranho em seus olhos e quando olhei pra sua cauda juro que ví pingar uma gota de veneno no chão que ao cair se transformou em vapor enquanto fazia um leve chiado como de água caindo em panela quente.
Peguei as duas armas que estavam mais próximas, um frasco de desodorante e um cabide de roupas e me coloquei em posição de batalha. Depois de oito meses morando aqui você aprende a lutar e entende que em Yuli a regra é simples: ou você mata ou você amanhece no meio do arroizal com a boca cheia de formigas.

Ele deu um salto da parede em minha direção e girou no ar para que o ferrão de sua cauda viesse na direção exata do meu peito, eu saltei pra trás e dei uma cabidada no corpo do bixo, enquanto ele era arremessado em direção à parede eu mirei o desodorante e dei uma borrifada extra longa no bixo. Com a borrifada eu pude perceber que o seu equilibrio havia sido afetado, nem se quer se manter na parede mais lhe era possível.
Estiquei o pé rápidamente e peguei o meu chinelo enquanto ele, vendo que a batalha estava perdida, batia em retirada para o ponto escuro mais próximo que pro meu azar era de baixo da minha cama. Apesar do meu esforço o monstro de garras e corpo preto sumiu para a escuridão da cama e isso me obrigou a ir dormir na sala.

Hoje de manhã meu pai me acordou, eu estava babando no sofá. Ele perguntou o que havia acontecido e eu expliquei sobre o escorpião, o velho disse que ia resolver o problema, abriu uma gaveta e tirou uma sub-metralhadora de lá de dentro e já saiu subindo a escada. Eu pude ouvir o barulho dos tiros e acho que agora o quarto está em paz.




Beijos beijos.
Lucas Casasco, um brasileiro em Taiwan.