Era uma vez um gato xadrez, mas eu comecei a escrever pra
falar de um projeto de lei que trata do Programa Municipal de Combate à Sexualização
de Crianças e Adolescentes... E o gato nada tem a ver com isso, acontece que antes
de pensar em escrever algo sério eu preciso tirar toda e qualquer coisa que
esteja ocupando meu cérebro nesse momento e nesse momento existe um gato
ocupando meu cérebro. Um gato xadrez. Um gato xadrez e gordo, mascando capim,
sentado em baixo de uma árvore vendo a boiada passar. E a boiada passa, boiando
por ali, com seus chifres chifrudos e pontudos a apontar pro céu. Faz tempo que
eu não vejo um boi vivo ao vivo, de perto. Faz tempo que eu não sinto cheiro de
grama recém cortada também, ou o cheiro de gasolina que o cortador de grama
solta quando você puxa a cordinha que dá partida no bicho e ele sai gritando
por ai com uma fome insaciável que supera todo e qualquer guzerá que está há
cinco dias sem comer. Come a grama, tritura ela inteira, nem rumina e vomita de
volta, solta no ar fumaça e um cheiro de gasolina com grama recém cortada. Os cortadores de
grama são bois tecnológicos, mas não rola matar pra comer. Tampouco eles tem
chifres... Mas o cheiro de grama é sempre verde. E sim, cheiros também tem
cores, assim como cores tem sons e algumas músicas são mais doces do que outras.
Acho que estou perdido em meio àquilo que sou, mas a essa altura do campeonato tanto faz também. São as noites mal dormidas e os trabalhos da faculdade. O estágio. O tempo perdido no transporte público sentado no chão dos vagões lendo algum livro. Pra faculdade. Acho que é o frio, ou o céu cinza de São Paulo fazendo frente à tudo o que é sagrado e natural, deixando claro que isso aqui é terra sem Deus. É sem Deus porque ele lá de cima – se é que ele fica mesmo por cima – não consegue olhar e ver, porque só vê cinza quando olha pra baixo. Criolo dizia que não existe amor em SP, talvez não exista Deus também. Talvez não exista nada, nem vida, apenas automatismo humano, gente andando pra lá e pra cá se esquecendo de amar ou rezar ou comer. Existem sim templos e igrejas, existem cantos e cânticos e missas e padres e pastores, existem os carros que são mais sagrados que toda e qualquer outra coisa e as cadeias de fast-food. Mas Deus? Deus... Acho que ele se esqueceu dessa terra e foi dar um passeio lá no interior de Minas. Eu abriria mão da minha onipresença só pra não ter de encarar o céu cinza de São Paulo, caso fosse Deus. Mas não sou.
O cinza anda me irritando mais do que o normal porque meu coração não está mais aqui. Enfiado no meio do meu peito. Quando saí de Três Lagoas fiz questão de cavar um buraco em baixo do pé de manga do quintal de casa e enterrar ele ali. Depois finquei uma plaquinha onde escrevi “Família, cuidem bem, só precisa regar uma vez por dia.” Peguei minha mala, enfiei minhas coisas dentro e vim pra cá. Antes eu carregava esse bicho comigo, andava de peito aberto pra tudo quanto é coisa que pudesse vir. Agora ele está enterrado junto ao meu umbigo, na terra onde nasci. Ele tinha muitos furos e problemas e sei bem que uns dias embaixo do pé de manga, sendo regado e bem cuidado, resolvem o problema. Volto agora pra casa, pra Páscoa, e aproveito e trago ele de volta, socado no meio do peito, renovado e inteiro, sem problemas nem furos nem líquido preto e viscoso escorrendo. Volta inteiro, limpo, lindo e pulsante. E volta carregado daquilo que a família encheu, daquilo que eles nutriram, da loucura da irmã mais nova, a engenhosidade do pai, a organização da mais velha e o amor da mãe. Porque mães são só amor. Mas a minha é bem mais.
Assim a confusão se desfaz, o desgaste se desfaz, as baterias se recarregam e eu aproveito pra comer ovos de Páscoa e quem sabe sentir de novo o cheiro da grama ou ver um boi, observar as capivaras, ouvir o canto das araras. O mato é o mato e por mais menino criado à leite com pera e Ovomaltine que eu seja, ele não sai do meio do meu peito. Demorei vinte anos pra entender certas coisas. Demorarei mais vinte pra entender o resto.
Acho que estou perdido em meio àquilo que sou, mas a essa altura do campeonato tanto faz também. São as noites mal dormidas e os trabalhos da faculdade. O estágio. O tempo perdido no transporte público sentado no chão dos vagões lendo algum livro. Pra faculdade. Acho que é o frio, ou o céu cinza de São Paulo fazendo frente à tudo o que é sagrado e natural, deixando claro que isso aqui é terra sem Deus. É sem Deus porque ele lá de cima – se é que ele fica mesmo por cima – não consegue olhar e ver, porque só vê cinza quando olha pra baixo. Criolo dizia que não existe amor em SP, talvez não exista Deus também. Talvez não exista nada, nem vida, apenas automatismo humano, gente andando pra lá e pra cá se esquecendo de amar ou rezar ou comer. Existem sim templos e igrejas, existem cantos e cânticos e missas e padres e pastores, existem os carros que são mais sagrados que toda e qualquer outra coisa e as cadeias de fast-food. Mas Deus? Deus... Acho que ele se esqueceu dessa terra e foi dar um passeio lá no interior de Minas. Eu abriria mão da minha onipresença só pra não ter de encarar o céu cinza de São Paulo, caso fosse Deus. Mas não sou.
O cinza anda me irritando mais do que o normal porque meu coração não está mais aqui. Enfiado no meio do meu peito. Quando saí de Três Lagoas fiz questão de cavar um buraco em baixo do pé de manga do quintal de casa e enterrar ele ali. Depois finquei uma plaquinha onde escrevi “Família, cuidem bem, só precisa regar uma vez por dia.” Peguei minha mala, enfiei minhas coisas dentro e vim pra cá. Antes eu carregava esse bicho comigo, andava de peito aberto pra tudo quanto é coisa que pudesse vir. Agora ele está enterrado junto ao meu umbigo, na terra onde nasci. Ele tinha muitos furos e problemas e sei bem que uns dias embaixo do pé de manga, sendo regado e bem cuidado, resolvem o problema. Volto agora pra casa, pra Páscoa, e aproveito e trago ele de volta, socado no meio do peito, renovado e inteiro, sem problemas nem furos nem líquido preto e viscoso escorrendo. Volta inteiro, limpo, lindo e pulsante. E volta carregado daquilo que a família encheu, daquilo que eles nutriram, da loucura da irmã mais nova, a engenhosidade do pai, a organização da mais velha e o amor da mãe. Porque mães são só amor. Mas a minha é bem mais.
Assim a confusão se desfaz, o desgaste se desfaz, as baterias se recarregam e eu aproveito pra comer ovos de Páscoa e quem sabe sentir de novo o cheiro da grama ou ver um boi, observar as capivaras, ouvir o canto das araras. O mato é o mato e por mais menino criado à leite com pera e Ovomaltine que eu seja, ele não sai do meio do meu peito. Demorei vinte anos pra entender certas coisas. Demorarei mais vinte pra entender o resto.